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A construção de uma ferrovia costuma ultrapassar a duração de um governo, ou vários, considerando desde o debate político, levantamentos de campo e projeto de engenharia, até a consolidação dos aterros e organização do tráfego, o que torna bastante relativas, tanto ideias de “culpa” quanto de “realização”. Há gente demais envolvida, em geral uma geração inteira, para se imaginar “erros” crassos de personalismo ou glórias isoladas.
As definições iniciais da ferrovia para Brasília fundaram-se sobre estudos e análises já debatidos por mais de 10 anos, em especial quanto a alguns pontos determinantes:
a) O reaparelhamento geral das ferrovias brasileiras, resgatadas ao capital estrangeiro após décadas de péssima experiência de “concessão” pela República velha (Joaquim Murtinho e “funding loan”), em sucateamento acelerado desde o crash de 1929 e a II Guerra Mundial;
b) A localização das ferrovias mais próximas a Brasília, EF Goiás, RMV, Cia. Mogiana, Central do Brasil, Cia. Paulista;
c) Estudos técnicos e relatórios oficiais recomendando, invariavelmente, uma “entrada única” ferroviária, não o “trânsito de passagem” pelo Distrito Federal, que não deveria competir economicamente com os estados, nem se superpovoar.
A “modernização” e reaparelhamento das ferrovias, sob controle nacional, começou de modo empírico, fragmentado por regiões, com a federalização das ferrovias cearenses (RVC, 1915), a encampação das ferrovias gaúchas (VFRGS, 1926), a ocupação militar da EF São Paulo - Rio Grande (RVPSC, 1930), a reunião das ferrovias mineiras (RMV, 1931), baianas (VFFLB, 1935), a devolução da Leopoldina Railway (EFL, 1950) e da Great Western (RFN, 1951).
Avaliações mais abrangentes, de forte inspiração no “modelo” norte-americano, passaram pela Missão Cooke (1942), Missão Abbink (1948), Comissão Mista Brasil - EUA (1951-1953), criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, 1952), e vieram se consolidar no Plano de Metas (1956-1960), a par com a criação da Rede Ferroviária Federal (RFFSA, 1957), após longo debate no Congresso; e a construção de Brasília (1960), determinada pela Constituinte desde 1946. Há muito pouco espaço, nesse processo, para se atribuírem “erros” ou “glórias” a qualquer individualidade.
O planejamento geral da malha ferroviária, engavetado o Plano da Comissão (1890) pelo Congresso logo no início da República velha, só foi oficializado por decreto do governo Vargas (1934); mas voltou à estaca zero, no pós-guerra; e só após longo debate no Congresso voltou a existir, um tanto precariamente, entre 1951 e 1956, às vésperas da formação da RFFSA e da construção de Brasília.
Ao iniciarem-se as obras de Brasília, no final de 1956, as opções de ligação ferroviária não deixavam grande margem a dúvidas: a Estrada de Ferro Goiás (EFG), em bitola métrica, estava a apenas 130 km do canteiro de obras da nova capital, contados a partir de Anápolis; ou a 240 km contados de Pires do Rio, enquanto a Central do Brasil ainda estava a 490 km (faltando alargar a bitola em outras centenas de quilômetros); e a Cia. Paulista, ainda a 766 km de distância, pedia Cr$ 6 bilhões para estender seus trilhos até a nova capital. Apesar da clara preferência dos militares e de boa parte dos engenheiros da época pela bitola larga, ela não podia ser seriamente considerada, naquele momento, ainda que talvez não fosse prudente dizer isso com todas as letras, na época.
Das duas opções pela EF Goiás, a ligação ferroviária partindo de Anápolis exigiria um investimento menor, além de estimular o intercâmbio local e fortalecer ali um polo econômico capaz de gerar empregos e reter migrações fora do DF, porém oneraria o abastecimento de Brasília a partir dos grandes centros industriais do Sudeste, pela volta em maior distância. O transporte de passageiros também se ressentiria de um trajeto mais demorado. Daí, a opção pela segunda opção, uma ligação de 240 km, entroncando mais no rumo de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, e aproveitando a inclinação natural dos vales dos rios Corumbá e São Bartolomeu, recomendados pelo engenheiro Varnhagen desde os tempos do Império.
Construir vários acessos ferroviários ao interior do novo Distrito Federal estava fora de cogitação, por pelo menos dois motivos: (a) Seria uma dispersão de recursos, sem justificativa imediata; e (b) Desde longa data predominava a ideia de que a área da futura capital não aglomerasse atividades econômicas de grande vulto, preferindo-se um ramal ferroviário único, apenas de “entrada”, e não um cruzamento de ferrovias em todas as direções. Entroncamentos, deveriam situar-se ao sul do futuro DF, inicialmente, eram previstos em Catalão, e apenas um ramal conectaria a capital ao sistema. Sob esse aspecto, mais uma vez, Anápolis seria candidata natural a centralizar as conexões (e o desenvolvimento econômico), a meio caminho entre 2 centros “políticos” locais: Goiânia e Brasília.
De fato, a ligação ferroviária a partir de Anápolis, num percurso de 163 km até Brasília, foi a diretriz indicada pelo DNEF, em 7 Nov. 1956, para discussão com a recém-criada Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). Na concepção do DNEF, porém, tratava-se de ligação de importância “secundária”, conectando a futura capital a “mercados regionais” (Goiás, Minas), então servidos pela bitola métrica da EF Goiás, RMV e Mogiana, pois o “principal” caberia às conexões para os grandes centros urbanos do Sudeste, em bitola larga, via Central do Brasil (a chegar por Formosa) e Cia. Paulista.
É muito possível que a equipe de JK e Israel Pinheiro visse, nesses rumos propostos pelo DNEF, a perpetuação de discussões infindáveis, entre órgãos paralelos, de pontos já debatidos; e a dispersão de recursos entre múltiplas opções, que tradicionalmente nunca avançavam mais do que alguns quilômetros aqui, outros poucos quilômetros ali. Fato é que, em 26 Mar. 1957, o projeto e construção da(s) ferrovia(s) para Brasília foi entregue à Novacap, por 5 anos.
A partir desse ponto, é preciso distinguir duas funções da Novacap, naquele momento:
(a) No plano imediato, solucionar a logística do material pesado de construção para as obras de Brasília; e
(b) No médio prazo, o planejamento, levantamentos de campo, projetos de engenharia e início de construção da(s) ferrovia(s) para atender à nova capital dentro de 8 a 10 anos, prazo típico em obras desse gênero.
Em 16 Out. 1956, o DNER divulgou sua proposta de rodovia ligando Anápolis, “ponta dos trilhos” da EF Goiás, ao canteiro de obras de Brasília: um giro de 189 km para o norte, pela “Transbrasiliana” (Anápolis-Belém), virando a leste nas proximidades de Corumbá de Goiás para alcançar o Distrito Federal por Braslândia, o ponto mais distante das obras de Brasília, que começariam das proximidades do Catetinho (“saída sul”) até o Paranoá, passando pela “Velhacap” (Candangolândia).
Quatro meses depois, em 11 Fev. 1957, também o planejamento e construção da rodovia Brasília-Anápolis já estava atribuído à Novacap; a concorrência administrativa já tinha sido realizada; e a nova diretriz era um traçado direto, de “primeira classe” (rampa máxima de 6%), com apenas 130 km, que de fato viria a ser construída e asfaltada em pouco mais de 12 meses (Mai. 1957 a Jun. 1958). A partir daí, cimento, vergalhões, estruturas metálicas etc., descarregados dos trens em Anápolis, puderam ser levados, dia e noite, para os canteiros em Brasília, permitindo às obras tomar novo ritmo.
Paralelamente, a Estrada de Ferro Goiás (EFG), a Rede Mineira de Viação (RMV) e a Cia. Mogiana de Estradas de Ferro (CMEF), como várias outras, dentro do Plano de Metas, recebiam investimentos em dormentes, trilhos, lastro (pedreiras), locomotivas, vagões etc., para aumento imediato de sua capacidade de transporte. Nos anos seguintes, concluíram-se também novos pátios de cruzamento, retificações de traçado e outros investimentos de modernização e reaparelhamento.
Já o planejamento da ligação ferroviária demandou mais tempo (além de levantamentos por aerofotogrametria), e a própria construção não poderia se concluir dentro do mandato JK, no início de 1961, muito menos, antes da inauguração de Brasília, em Abril de 1960.
Adotou-se a diretriz recomendada em vários estudos anteriores, de uma “entrada única” no Distrito Federal, que seria comum à bitola métrica (EF Goiás / RMV / Mogiana) e à bitola larga (Central do Brasil e Cia. Paulista), ambas com entroncamento em Surubi, foz do ribeirão Saia Velha no rio São Bartolomeu.
A rigor, era preciso construir o acesso ferroviário em bitola métrica desde o Roncador, na EF Goiás, até Surubi; e de Surubi até a “esplanada ferroviária” de Brasília, na extremidade oeste do Eixo Monumental, totalizando cerca de 245 km.
Acontece que as coisas não eram assim tão simples, nas disputas políticas no Congresso, as verbas, em geral insuficientes para 1 ou 2 obras, tendiam a se repartir e pulverizar, com parcos resultados em inúmeras frentes de obra, e acabaram contemplando todas as opções debatidas, inclusive a da Cia. Paulista, que jamais teve intenção de investir 1 centavo numa linha para o planalto central.
A “entrada única”, porém, permitia concentrar todas aquelas verbas, inclusive a de ligação da nova capital “à rede ferroviária do estado de S. Paulo”, já que o trecho de Surubi a Brasília seria comum a todos os pleitos políticos.
Esta é uma explicação possível de por que Israel Pinheiro começou a obra pelo final, Surubi - Brasília, e não pelo trecho inicial, Roncador-Surubi.
Os relatórios da Novacap e do governo JK, não desmentidos por nenhum “inquérito policial-militar” (IPM) do governo Jânio Quadros nem da ditadura de 1964, indicam que ao final de 1959 as obras na ligação Brasília - Surubi - Pires do Rio já se encontravam no “greide” 94 km, ou seja, Brasília-Surubi (86 km) + 8 km; e concluídas 119 obras de arte, incluídos 3 viadutos (total 114 m) em cruzamentos da ferrovia com as rodovias Brasília-Anápolis e Brasília - Belo Horizonte (possivelmente no Núcleo Bandeirante e SMPW).
Admitindo que as obras da ligação ferroviária pouco tenham avançado no último ano do governo JK, após a inauguração de Brasília, ou no conturbado governo João Goulart, restaria ao ministro Juarez Távora e ao Batalhão Mauá a conclusão de mais 140 km até o nível do “greide”, em 4 anos, para improvisar uma “via de serviço” capaz de suportar pequenas locomotivas, vagonetas de lastro etc.
Na única outra frente de obra ferroviária, a Novacap prosseguiu também com o prolongamento da Central do Brasil, nas proximidades de Paredão de Minas, cenário do embate final em “Grande sertão: veredas”, publicado naquele ano, o que não deixa de apresentar o sabor de um desafio, já que a linha em bitola larga da EFCB privilegiaria Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, caso a Cia. Paulista não se mexesse.
O traçado de Paredão de Minas a Brasília, previsto para chegar a Formosa (GO), foi alterado para dirigir-se ao famigerado entroncamento geral de ferrovias em Surubi. Pelo menos no papel, já que a frente de obras ainda estava distante desse trecho alterado.
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