As ferrovias de São Paulo - 1870-1940
Prefácio
Coube a um jovem historiador e economista, um estreante em pesquisa
histórica, o exame de algumas questões sobre o comportamento
de três ferrovias paulistas, para iluminá-las com nova
reflexão, e enriquecer, com pesquisa original, a visão
dos problemas e perspectivas com respeito ao transporte ferroviário.
O assunto, as ferrovias, é um clássico na bibliografia
histórica brasileira. De um lado, dispomos das obras de Ribeiro
Pessoa Júnior, Chrockatt de Sá, Pereira da Silva,
Adolfo P. Pinto, Palmanho de Jesus, entre outros, que deram ordem
ao amontoado de fatos, em sistematização e síntese
descritivas e cronológicas. De outro, estão as análises
de fecunda contribuição interpretativa quanto aos
fatores do meio físico, social e econômico, nos quais
se compõem a atividade ferroviária, sema em trabalhos
especializados como os de Duncan ou Nogueira de Matos, ou as perspectivas
mais abrangentes, como as de Monbeig, Ribeiro de Araújo,
Sunkel. Outros autores, como Cipollari, trouxeram para o campo de
análise a visão do economista, interessado especialmente
em compreender os fenômenos do declínio e dos déficits
operacionais das ferrovias, com base nos princípios teóricos
da Ciência Econômica. O histórico de uma via,
em particular, realizado, entre ouros, por Fernando de Azevedo,
por Debes, além do interesse que merece o assunto por si
próprio, proporciona a exemplificação aproximativa
de alguns problemas mais gerais, comuns às estradas de ferro.
No momento presente, no qual os problemas de transporte suscitados
pela questão da energia, colocam-se acaloradamente dentre
as mais vivas preocupações nacionais, Flávio
Azevedo marques de Saes, com sua tese de mestrado, nos proporciona
uma análise muito densa sobre o funcionamento das ferrovias,
no contexto das condições da economia paulista e na
dinâmica do tempo, sob perspectiva histórica. Uma análise
original, que busca, infatigavelmente, esclarecer a trilha de vivência
percorrida no tempo pelas ferrovias, com o objetivo de responder
às perguntas cruciais sobre o declínio do transporte
ferroviário, após um passado de prosperidade. Concentrou-se
em três vias importantes - a Paulista, a Mogiana e a Sorocabana,
as quais, em 1892, abrangiam 73% da rede ferroviária do Estado.
Partiu da década dos 70 do século passado, marco cronológico
do estabelecimento daquelas vias, e encerrou em 1940, com a Segunda
Guerra Mundial. Entre estes dois momentos, a motivar o historiador,
está o processo dinâmico que se desenvolve entre a
conquista do Oeste paulista, favorecida pelos trilhos de ferro,
e o reconhecido declínio do transporte ferroviário.
Velhas afirmações foram revigoradas, outras não
resistiram à objetividade com que foram novamente testadas.
A importância do café é uma constante na compreensão
de todo o processo, ainda que varie, no tempo, sua conotação.
Consagrou-se, mais uma vez, neste estudo, a conhecida afirmação
que qualifica as ferrovias paulistas como "estradas do café",
seja pelos interesses dos produtores e comerciantes que orientaram
suas diretrizes, seja pela importância do produto no tráfego,
a condicionar estreitamente sua rentabilidade.
Tais são, contudo, reconhecimentos introdutórios
para chegar ao trato do âmago do problema central, a rentabilidade,
como categoria explicativa da prosperidade e do declínio.
Ambos passam a ser inventariados, sob outra perspectiva, a dos fluxos
de transportes, em correlação com os desenvolvimentos
da economia paulista, e o nível das tarifas. Observadas a
funcionar como elementos do sistema econômico, como um todo,
as ferrovias revelam grande sensibilidade com respeito às
flutuações que identificam as fases de prosperidade
e de recessão. Análises de fluxos e de tarifas que
novamente confirmam a importância do (pág. 9) café;
crises do café, que não desestimularam o crescimento
de suas culturas que as ferrovias impulsionam.
Outro fator, externo a este processo, é posto em evidência.
A taxa de câmbio, de fundamental importância, é
um dos principais elementos que (instrui?) um marco cronológico,
estabelecido pelo Autor, no processo histórico das ferrovias
paulistas, como um divisor de águas - a década de
90. Nos primeiros vinte anos da implantação e funcionamento
das ferrovias, coexistia perfeita solidariedade entre o mercado
cafeeiro e a prosperidade ferroviária, que se comprova pela
proporcionalidade entre os dividendos e o montante transportado
em toneladas de café. A partir da década dos 90, a
violenta queda da taxa cambial, o processo inflacionário
desde os primeiros anos da República, repercutem intensamente
sobre as ferrovias, ao mesmo tempo em que se tornam mais vulneráveis
ao caráter cíclico do mercado cafeeiro. Estabelece-se,
deste modo, nos anos 90, nítida contradição
entre os interesses dos produtores de café, que se favoreciam
com o aumento do preço do produto no mercado interno, provocado
pela desvalorização da moeda, e os interesses das
empresas ferroviárias, pesadamente oneradas pelo maior custo
do material importado, indispensável à sua atividade,
pelo serviço de dívida no exterior, com a elevação
dos salários sob a pressão inflacionária. Ainda
que significadamente cresça - a Sorocabana também
se torna uma ferrovia do café - ao volume de mercadorias
transportadas não se pode mais atribuir o sentido subjacentes
de prosperidade estável.
A década dos 90, um momento histórico à atenção
dos pesquisadores, se, por um lado, acumulou, na sua problemática,
circunstâncias transitórias, por outro levou a uma
percepção mais aguda das singularidades que presidiram
à implantação e desenvolvimento das ferrovias,
em desvio aos padrões ordinários, para servir a uma
economia periférica, estreitamente vinculada ao produto de
exportação, com o mercado interno insuficiente para
lhe dar apoio, sem cargas de retorno do porto de destino, e que
se revelou também carente de fontes internas de poupança
para financiar os prolongamentos e a modernização.
Talvez em conseqüência, desde 1910 o catálogo
dos acionistas acusa a participação crescente de grupos
estrangeiros.
Sob outro aspecto, nos anos 90, o emergir da consciência
quanto à necessidade de diversificar a economia, à
qual vinha servir o próprio desenvolvimento ferroviário,
significava novos rumos para a economia paulista, tímidos
a princípio, a desabrochar plenamente no ano 30. Contudo,
na década dos 90 encerrava-se o período áureo
da rentabilidade das ferrovias.
Em face desse quadro, da complexidade dos problemas que afetam
as ferrovias, o Autor reavalia o velho chavão de ineficiência
dessas empresas, quando associadas à administração
estatal, apontadas, de ordinário, como representativas de
uma política de desperdício e dilapidação.
A análise da despesa e da eficiência operacional das
ferrovias estudadas mostrou que vários fatores que elevam
a despesa situam-se fora do controle por parte de sua administração,
e nem a pecha do empreguismo se ajusta à evidência
dos dados com respeito à Sorocabana, única ferrovia
do Estado, no período. De modo geral, a ferrovia cronicamente
deficitária, em declínio, somente pode manter-se sob
a tutela do Estado. o papel social da via de comunicação
não pode ser negligenciado.
Estes delineamentos marcam alguns dos principais caminhos percorridos
pelo Autor, no estudo dos fatores condicionantes do declínio
do transporte ferroviário. Situamo-nos no plano das idéias
gerais; contudo, um dos característicos metodológicos
que distinguem este trabalho, é justamente o esforço
para trazer à investigação todos os elementos
que chegam ao nível da máquina administrativa, desde
que se considerem significativos para o diagnóstico do desempenho
da empresa, observados dentro do processo histórico. Grande
parte da evidência empírica consta dos relatórios
das estradas de ferro, um conjunto expressivo de 212 peças
documentais. A massa de dados quantitativos foi enriquecida com
elementos hauridos em outras fontes, e pacientemente sistematizada
em tabelas e vários quadros, que constituem parte muito importante
do embasamento de toda a argumentação. Esta intimidade
estatística permitiu a observação de vários
problemas, em sua variação no tempo, subjacentes no
processo histórico, elementos sempre referenciais em estudos
sobre ferrovias, que (pág. 11) ainda não haviam sido
objeto de análises mais pormenorizadas.
Contudo, o Autor não é um singelo arquiteto de tabelas.
É de se notar a pertinácia com que investiga os números,
a interrogar a natureza dos fatos que as cifras qualificam, as variações
de sua importância no tempo, como reflexos do amplo processo
histórico. O número não sobreleva a palavra:
depoimentos, correntes de opinião, debates e análises
coevas, se entretecem com os estudos dos autores precedentes, e
dão equilíbrio ao material nutriente utilizado.
A exposição conduz o leitor, num fio lógico,
às proposições e hipóteses anunciadas
em seqüência, cada uma estudada sob vários ângulos,
e, esgotada a argumentação, torna-se o fundamento
e o elo com referência às seguintes. Trata-se de uma
tese, não simplesmente de uma monografia, no sentido de que
se estrutura com o comando da comprovação, sempre
presente. Esta percorre cada argumento, conferindo ao todo grande
solidez. Nada foi lançado ao acaso, nenhuma generalização
é fortuita. O raciocínio é límpido,
incisivo, tranqüilo na sua força; o estilo agradável
e escorreito, a linguagem simples e concreta.
Trabalho de um estreante, dissemos de início, de cuja referência,
novos estudos sobre ferrovias não poderão prescindir.
Um estreante que surpreende pela maturidade intelectual e se revela
admiravelmente bem dotado, com invulgar capacidade para a investigação
inteligente no campo da História.
Alice
Piffer Canabrava
Novembro, 1979
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