A documentação das grandes obras de engenharia civil é prática
comum desde os primórdios da fotografia. Muitos são os exemplos
de acervos retratando essas construções onde ressaltam, em particular,
o grande ícone da modernidade, as ferrovias. Portanto, a contratação
de um fotógrafo para o registro da evolução das obras da Madeira-Mamoré
não constitui um fato original. Quanto ao ambiente de trabalho,
este era tenso - uma multidão de aventureiros das mais diversas
etnias lutando contra as forças de uma natureza indomável que repelia,
e ainda repele, à sua maneira, a introdução do homem. Nesse meio
exótico, podemos especular, a interação do fotógrafo com o ambiente
poderia provocar o estímulo para a criação de uma obra original.
Isoladamente, contudo, esta situação em si não basta para que surjam
trabalhos como o conjunto fotográfico Madeira-Mamoré. A construção
de estradas de ferro em ambientes inóspitos, como a Sibéria ou as
Selvas do Congo, não gerou acervos importantes como as imagens da
ferrovia amazônica. De onde, então, emergiriam essas imagens dramáticas
e contundentes, para as quais não encontramos referências anteriores,
senão da própria genialidade do fotógrafo? Quem seria o autor dessas
fotografias de qualidade técnica tão elaborada, criterioso em seu
processamento, fato que as permitiu sobreviver às condições tão
adversas de calor e umidade nas selvas amazônicas? Dana Merrill,
o official photographer da Madeira-Mamoré Railway, só foi identificado
através de The Jungle Route, o livro de Frank Kravigny, o escriturário
sobrevivente da construção. Pouco se sabe do fotógrafo, fora o fato
de que teria trabalhado para a prefeitura de Nova Iorque e para
lá voltou, como confirmam os boletins da Madeira-Mamoré Association.
Provavelmente, foi essa experiência anterior que o capacitou para
a empreitada, fornecendo inclusive o suporte técnico com o qual
desembarcou na primeira clareira de Porto Velho.
O equipamento fotográfico usado por Dana Merrill era praticamente
o mesmo usado pela maioria dos profissionais de então. O formato
13 x 18 cm, considerado pequeno e leve para sua época, era o que
mais se adequava às necessidades de deslocamentos freqüentes, por
terrenos de difícil locomoção. Para os negativos, além de placas
de vidro, mais comuns, Merrill adotou também o uso dos chassis do
tipo film pack, que era uma novidade. Estes eram compostos por placas
emulsionadas em bases flexíveis, bem mais leves que o vidro, acondicionadas
em pacotes, geralmente de doze unidades. Esta opção permitia ao
fotógrafo uma considerável economia de peso no equipamento e mais
agilidade na troca das chapas. Contudo, a câmara usada continuava
sendo aquela convencional, mais apropriada para a execução das documentações
tradicionais, tomadas a média distância, rigorosamente enquadradas
e privilegiando a pose, que de certa forma era induzida pelo uso
compulsório do tripé.
Evidentemente, muitas das imagens remanescentes se enquadram nas
categorias da produção fotográfica do início do século. Mas Merrill
era um fotógrafo incomum, à frente de seu tempo e não se limitava
às imposições técnicas ou a padrões estéticos. Levando ao extremo
as possibilidades de seu equipamento, explorava a variedade de ângulos
e muitas vezes subvertia os padrões da fotografia da época, como
quando força exposições longas para cenas de movimento. O importante
era não perder o instantâneo. Suas imagens sugerem que o fotógrafo
se lançava ao ponto de vista que melhor traduzisse a sensação que
lhe tomava, mesmo que para tanto tivesse que descer em valetas,
subir em andaimes, entrar em lama, fotografar de dentro de barcos
ou do alto de vagões e árvores. Esses procedimentos, considerados
comuns nos dias de hoje, são marca pioneira de Dana Merrill. Suas
imagens mostram cenas tão dinâmicas como se o fotógrafo portasse
uma câmara de 35 mm, desssas que só surgiriam vinte anos mais tarde.
A tarefa de Merrill era documentar o desenvolvimento da obra. A
análise de suas imagens indica a ausência de um roteiro planejado,
mais sugerindo uma narrativa arbitrária, estabelecida provavelmente
segundo as oportunidades encaixadas na seqüência geral dos trabalhos,
onde cada negativo, com sua numeração sistematicamente anotada a
nanquim, induz à conclusão restrita de uma ordem cronológica sem
confirmação.
Mas o fotógrafo, além dos trabalhos específicos da obra civil,
envereda pelo desfile de quase todos os tipos humanos que participavam
da empreitada. Aqueles que não eram apresentados em grupos, como
os burocratas, os servidores da lavanderia ou do hospital, apareciam
em poses individuais ou em duplas, com o fundo constante do ambiente
de trabalho. Outros são retratados individualmente, com destaques
para as fisionomias e seus trajes típicos. Mas isso é apenas parte
de seu trabalho. As imagens conhecidas são da seleção feita por
Manoel Rodrigues Ferreira que, com sua formação de engenheiro, se
inclinou provavelmente para as imagens mais diretamente ligadas
à construção. Se fosse Ferreira um botânico ou um biólogo, que imagens
teriam chegado até nós?
Perguntas sem respostas, poucas são outras chapas atribuídas a
Dana Merrill, como aquelas guardadas na Biblioteca
Nacional¹. Aos arquivos queimados pelos últimos responsáveis
pela ferrovia² somam-se imagens perdidas do fotógrafo, como
tantas outras vidas desaparecidas anonimamente, erguendo em torno
da história ausente e cortina de lendas e mistérios que só fazem
enaltecer a aura trágica da "ferrovia do diabo".
*Pedro Ribeiro é fotógrafo e doutorando em História Social pela
FFLCH-USP.
¹A coleção de Percival Farquhar (setor de Obras Raras da Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro), empresário da Madeira-Mamoré Railway,
reúne fotografias e demais documentos do mesmo período.
²Em 25 de maio de 1966, com o Decreto 58.501, o presidente Castello
Branco transfere a responsabilidade da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
para a Diretoria de Vias e Transporte do Ministério da Guerra. Pelo
decreto, cumpria ao 5° Batalhão de Engenharia e Construções, sediado
em Porto Velho, a desativação da ferrovia.