Classificação de locomotivas a vapor
O sistema de F. M. Whyte
Flávio R. Cavalcanti — Centro-Oeste n° 78 — 1°-Mai-1993
O sistema Whyte descreve a locomotiva a vapor pelo número de rodas, segundo
sua função:
Jogo de guia, à frente da locomotiva. Não fazem esforço
para movimentar o trem. Deslizam facilmente nas curvas, servindo de guias
para as demais. Também são chamadas rodas-piloto,
ou rodas dianteiras etc. Quando são 4 — um truque
de 2 eixos — , oferecem estabilidade em velocidades maiores, sendo preferidas
para trens de passageiros. Mas isso não é uma regra rígida.
Rodas motrizes são as que recebem o movimento dos cilindros.
Elas suportam a maior parte do peso da locomotiva, sendo comprimidas sobre
os trilhos. Isso aumenta o atrito (aderência) nos trilhos, fazendo com
que a locomotiva se movimente.
Jogo de arrasto, formado pelas rodas de trás, geralmente
embaixo da cabine e/ou da fornalha. Não fazem esforço para movimentar
o trem, limitando-se a ser arrastadas. Também são chamadas rodas
portantes, pois dão suporte ao prolongamento posterior da locomotiva
(fornalha e cabine).
As rodas são contadas nesta ordem: — Da frente para a traseira da locomotiva.
A numeração 4-6-2, por exemplo, significa: —
4 rodas-piloto servindo de guias; 6 rodas motrizes acopladas; e 2 portantes,
suportando a fornalha.
Quando se trata de uma locomotiva-tanque, acrescenta-se um T. Por exemplo:
— Locomotiva 0-6-0 T. São locomotivas sem tênder,
transportando água e combustível em seu próprio corpo. Geralmente são
manobreiras, e não necessitam de grande autonomia — como ocorre com as
locomotivas de percurso.
Compreendendo a função desses 3 tipos de roda numa locomotiva a vapor,
fica claro que elas definem os diferentes tipos de máquina.
Um exemplo
Quando se fala numa 4-4-0, podemos fazer
uma idéia geral da locomotiva mesmo sem vê-la, ou ver sua ficha técnica.
Sabemos que é uma locomotiva com 4 rodas-guia; seguindo-se 4 rodas motrizes;
e nenhuma roda portante.
Supomos que pode desenvolver certa velocidade — desde que o trem seja
leve —, por ter 4 rodas-guia.
Mas, por mais furiosa que seja, não deve exercer grande força de tração,
com apenas 4 rodas motrizes.
Não se descarta que seja grande e pesada, o que lhe daria chance de adquirir
potência. Mas, existe um limite de peso por roda, que a via férrea pode
suportar. Assim, máquinas mais pesadas precisam ter seu peso distribuído
por maior número de rodas motrizes — já que não interessa jogar peso-morto
nas rodas não-motrizes.
A caldeira não deve ser muito longa — assim como a fornalha não deve
ser muito grande, nem muito larga —, já que não existem rodas portantes.
De fato, a 4-4-0 — conhecida como American
— é um tipo de locomotiva um tanto primitiva, embora mais tarde tenham
sido construídas algumas bem mais desenvolvidas do que o protótipo mostrado
aqui.
A título de curiosidade, o desenho mostra um protótipo a lenha, empregado
na Guerra de Secessão (Estados Unidos), 1 ano antes de Mauá inaugurar
os primeiros 14 km de via férrea no Brasil. O desenho não é exato, além
de ter sofrido várias simplificações, pois foi feito a partir de um original
de 47 mm.
Acima — American 4-4-0
de 1863. Note a disposição da fornalha, entre os eixos das rodas
motrizes. A chaminé-balão devia evitar que as fagulhas da lenha
incendiassem os algodoais.
Ao lado — (A) American 4-4-0
de 1876, ainda com a fornalha entre os eixos motrizes. (B)
American 4-4-0 de 1893, já com a fornalha
acima dos eixos, porém ainda entre as rodas motrizes. (C)
Santa Fe 2-10-2 de 1914, com a enorme
fornalha situada atrás do jogo motriz, sobre as rodas portantes.
Note a altura total, quase constante.
A American surgiu quando a caldeira ainda era um tubo de pequeno diâmetro,
cabendo entre as rodas motrizes. Lembre que as rodas motrizes são grandes,
de preferência.
Com o desenvolvimento das ferrovias, a caldeira tornou-se um tubo cada
vez maior e mais largo, passando a ser colocado acima das rodas motrizes.
Também existe um limite de altura, imposto pelo grande número de
túneis e viadutos que teriam de ser modificados. À medida
em que a caldeira subia e aumentava, foram-se rebaixando a chaminé,
o domo de fumaça e a caixa de areia, até tornarem-se meros tocos.
Por outro lado, a fornalha (junto à cabine) precisava de uma área
cada vez maior, para queimar mais combustível. Isso não podia ser
feito entre as rodas motrizes. Daí, a necessidade de estender a
parte de trás da locomotiva — para lá das rodas motrizes —, e colocar
ali rodas portantes, para suportar este prolongamento pesado.
Outros exemplos
Assim, quando ouvimos falar numa 4-6-2 (Pacific), supomos uma locomotiva
um pouco mais potente, por ter 6 rodas motrizes. A partir desse
tamanho, a presença de 2 rodas portantes também sugere uma fornalha
maior.
Falando de uma 2-8-0 (Consolidation), podemos supor que é uma locomotiva
de capacidade ainda maior. Tendo o dobro de rodas motrizes da 4-4-0,
é de se supor que tem uma caldeira maior (mais força), e maior aderência
(peso aderente). Mas daí por diante, locomotivas sem rodas portantes são
pouco famosas por sua potência.
Destacam-se as 2-8-2 (Mikado), as
4-8-2 (Mountain), as 2-10-2
(Santa Fe) e as 2-10-4 (Texas), como
máquinas realmente poderosas.
Tudo isso, naturalmente, sujeito a uma análise de cada locomotiva em
particular. Para cada tipo, houve exemplares maiores ou menores;
mais antigos ou mais modernos; e assim por diante.
O que importa, é compreender a lógica do sistema Whyte para classificação
de locomotivas a vapor.
Além de Whyte
Até aqui, tratamos de rodas motrizes acopladas — acionadas em conjunto
—; e todas instaladas no chassi principal da locomotiva a vapor.
Daí por diante, a rodagem começa a dizer pouco sobre uma locomotiva
— a menos que também se saiba o tipo de construção e funcionamento.
Ao criar seu sistema, o engenheiro norte-americano Frederic Methven
Whyte (1865-1941) dificilmente poderia prever as locomotivas que
surgiriam, ainda em sua vida.
Quanto maior a locomotiva — e o número de rodas instaladas no chassi
—, mais difícil fazer com que ela se inscreva nas curvas.
Nas planícies de Java — onde suponho que tenha andado —, uma Javanic
de 12 rodas motrizes deve ter encontrado curvas bem abertas. Não
ouso afirmar se ela é 2-12-2, ou 2-6-6-2.
Nas planícies da Sibéria — onde mais, uma Soviet? —, devia haver retas
suficientes para esta locomotiva de 14 rodas motrizes. Só não ouso decidir se
ela é 4-14-4, ou 4-8-6-4.
São bons exemplos de onde começa a confusão
entre os autores. As 12 rodas motrizes da Javanic — ou as 14 da Soviet
— não são acopladas num conjunto só. Mas os livros sugerem que todas são
instaladas no chassi principal.
Articuladas
Nem toda ferrovia podia enfileirar tantas rodas motrizes numa única base
rígida — o chassi principal.
Algumas ferrovias de montanha — onde mais se exige potência — também
são as que têm mais curvas. E às vezes, curvas fechadas.
Surgiram, então, locomotivas a vapor com 2 conjuntos de rodas motrizes
— cada um, com movimento lateral independente.
Eram as locomotivas articuladas. As mais conhecidas
no Brasil, são as Mallet e as Garratt.
Mallet
Fisicamente, as Mallet possuem um conjunto de rodas
motrizes — o de trás — no próprio chassi; e um outro conjunto, móvel,
na frente.
Note que o conjunto móvel é pivotado ao conjunto rígido, em fila indiana.
Sua independência não é completa. Por conta disso, usa-se um hífen separando
os conjuntos de rodas motrizes: — 0-6-6-0,
ou 2-6-6-2, ou 0-8-8-0,
ou 2-8-8-2...
Como se vê, a identidade da Mallet não depende da rodagem.
Os cilindros do jogo dianteiro (móvel) reaproveitam o vapor que já passou
pelos cilindros traseiros. Este vapor é reaquecido, antes de ser reaproveitado.
Os cilindros traseiros são de alta pressão; e os dianteiros, de baixa
pressão. Chama-se, por isso, Mallet Compound.
Outras locomotivas, com as mesmas rodagens de uma Mallet — inclusive a articulação
—, distinguem-se dela por terem todos os cilindros de alta pressão. São
locomotivas de expansão simples.
Um exemplo é a n° 204 da EF Dona Teresa Cristina, rodagem 2-6-6-2,
atualmente com a ABPF. A ABPF a considera Mallet de expansão simples,
e 2-6+6-2 — com sinal mais (+) no meio.
Na Garrat, existem
2 tenders — cada um, com todas as rodas que uma vaporosa tem direito
—, enquanto a locomotiva propriamente dita, não tem roda nenhuma.
Vai estendida como roupa no varal.
Na prática, portanto, a Garratt é dividida em 3 corpos.
Foi a disposição mais avançada a que chegaram as locomotivas a vapor,
com frisou a RBF. Os 2 tenders — um de água e outro de combustível — permitiram
grande autonomia, enquanto seu peso morto passava a ser usado para aumentar
a aderência.
Enfim, a divisão em 3 corpos proporcionou a maior flexibilidade em curva.
Mais do que apenas ter truques giratórios, os próprios corpos da locomotiva
se conformam às curvas.
Por conta disso, cada tênder se enumera como uma locomotiva completa
— inclusive, indicando a ausência de rodas-guia e/ou portantes, em cada
um deles: — 0-6-0+0-6-0, ou 2-4-2+2-4-2,
ou 2-6-0+0-6-2, ou...
Note que se usa um sinal mais (+) para unir as duas partes.
Este sinal mais (+) também é usado na designação
de outras locomotivas cujas rodas motrizes se dividem em dois conjuntos
independentes — como a Fairlie, a Meyer, e a Meyer-Kitson.
«»
A Fairlie, a Meyer, e a Meyer-Kitson, também não se distinguem
pela rodagem. Mais uma vez, a diferença escapa à mera contagem das
rodas, ou à mera existência de uma articulação.
Outros tipos
A notação Whyte de rodas pouco diz, também, sobre as locomotivas
Shay, ou sobre as Baldwin
Geared.
Diante de uma notação 4+4+4, por exemplo,
apenas ficamos sabendo que a EF Oeste de Minas teve uma locomotiva
com algo de excepcional — mas precisamos receber informação extra,
para saber que se tratava de uma Shay com transmissão a engrenagem.
Ignoro por que Fábio Dardes omite os zeros que indicam ausência
de rodas-guia e portantes (CO-70). Para a Shay da Leopoldina, Jairo
A. O. Mello anota 0-4-4-0 — e aí, não
sei por que o hífen ao invés de um mais (+).
Também é com hífen que Jairo A. O. Mello indica a Baldwin Gearead
(engrenagem) 0-4-4-0 da Leopoldina.
Não me parece descuido, já que no mesmo artigo houve o cuidado de
anotar a Kitson-Meyer
da Leopoldina como 2-6+6-4 (CO-75).
Fontes
A classificação das locomotivas, Paulo G. D. Salvado, Esporte
Modelismo n° 47, 1989
Catálogo do Museu do Engenho de Dentro, Preserfe / RFFSA, Rio
de Janeiro, 1983
Classificação de locomotivas articuladas, Marcelo Lordeiro,
Centro-Oeste n° 11, 1985/Nov.
Colección Moderna de Conocimientos Universales, Tomo 9 — Fuerza
Motriz, W. M. Jackson Inc., Nueva York, 1928, 1936
Como funciona a locomotiva a vapor, Horst E. Wolff, Esporte
Modelismo n° 21 e 22, 1985
História das Beyer-Garratt no Brasil, Revista Brasileira de
Ferreomodelismo n° 3, 1988
Quadro de locomotivas (xerox), do livro História Ilustrada do
Trem, Fresinbra, 1979