A unificação das bitolas ferroviárias (I):
– O caso das ferrovias da Inglaterra
Délio Araújo
Centro-Oeste nº 65
(10-Abr-1992)
A bitola da primeira via férrea comercial interurbana do mundo
— inaugurada em 15 de Setembro de 1830, com a imortal locomotiva
Rocket, de fabricação de George Stephenson — não foi o resultado
de uma investigação científica, nem de estudos de engenharia, ou
de economia dos transportes.
Simplesmente foi adotada, para os trilhos, a distância mais comum
encontrada entre as rodas das carruagens, diligências e carroções
ingleses: 1,435 metro. Essa distância entre os trilhos veio a ser
a bitola mais empregada, ou veio a ser a bitola predominante, muito
embora outras bitolas aparecessem logo após a inauguração.
Mesmo na Inglaterra, portanto, foram empregadas outras bitolas.
As de maior interesse comercial foram a bitola extra-larga, com
7' 1/4'' (2,14 m); e aquela que nós brasileiros denominamos bitola
larga (1,6 m), lá chamada de "bitola irlandesa".
A ferrovia Great Western, com base nas teorias e cálculos de seus
famosos funcionários — o engenheiro Isambard Kingdon Brunel e o
técnico Daniel Gooch —, adotou a bitola extra-larga de 2,14 metro.
O sucesso da superioridade inicial dessa bitola lançou-a às nuvens
da fama.
Quanto mais larga a bitola, maiores as vantagens técnicas decorrentes,
demonstrou Brunel:
1 — Quanto às locomotivas:
1.1 — Maior fornalha, que, nas locomotivas do século XIX, ficava
entre as longarinas e entre as rodas. Quanto mais larga a bitola,
melhor a combustão, maior a capacidade de vaporização e maior
a potência da locomotiva.
1.2 — Largas passagens e tubulações, impossíveis de serem adotadas
na bitola de Stephenson. Portanto, perdia-se menos potência
entre a caldeira, as válvulas e os cilindros. Isso era importantíssimo
nas décadas de 1830 a 1850, quando predominavam pressões de
caldeira por volta de 3,5 atmosferas, ou 50 libras por polegada
quadrada.
1.3 — Caldeira mais larga e mais curta, de construção mais
barata e mais resistente.
1.4 — Melhor estabilidade da locomotiva, com baixo movimento
de lacete. Esse podia, ainda, ser contrabalançado, se os cilindros
fossem colocados entre as longarinas, o que obviamente era mais
fácil em bitolas bem largas.
1.5 — Facilidade de emprego de grandes cilindros — necessários
em vista da baixa pressão da caldeira — entre as longarinas.
1.6 — Facilidade de colocação da distribuição no espaço entre
longarinas, e muito melhor acesso para manutenção desse mecanismo.
1.7 — Possibilidade de rodas motrizes de elevado diâmetro,
baixando a velocidade dos pistões e melhorando o desempenho
dos cilindros.
2 — Quanto aos vagões e carros:
2.1 — Maior capacidade e, portanto, menor número de veículos
por trem.
2.2 — Devido à maior capacidade, maior facilidade de competição
comercial a custos mais baixos e, em conseqüência, a tarifas
inferiores.
2.3 — A bitola extra-larga permitia melhor deslocamento de
tropas militares, armamento, infantaria, material bélico e de
cavalaria.
A discussão em torno das bitolas já era acirrada no início da década
de 1840. A extensão ferroviária explodira e, como era inevitável,
assomaram os problemas de tráfego mútuo, decorrentes das quebras
de bitola.
Em 1840, Isambard Kingdon Brunel — desde 1833, engenheiro da Great
Western, a líder da bitola extra-larga, ferrovia da qual prometera
fazer "the finest in England" — colocou em tráfego as magníficas
2-2-2, da classe Fire Fly (vagalume), com 2 rodas motrizes com 2,134
metros de diâmetro.
Uma delas, a Ixion, foi escolhida para o famoso teste das bitolas.
Era o que o mundo ferroviário britânico da época alcunhava de "Battle
of the Gauges" (batalha das bitolas). Em 1845, diante do Government
Gauge Commissioners (comissão governamental para as bitolas), a
Ixion disparou da estação londrina de Paddington até Didcot, a 85
km, em 63,5 minutos, com o máximo de 98 km/h — "a feat far beyond
anything the narrow gauge could do on the tests between York and
Darlington" (uma façanha muito além do que a bitola estreita
[era a bitola normal de Stephenson] pôde fazer nos testes entre
York e Darlington).
A bitola extra-larga, em 1842, já operava os trens mais rápidos
do mundo inteiro, entre eles o afamado Flying Dutchman que, de 1842
a 1892, correu de Londres (Paddington) a Savindon, cobrindo os 124
km em 78 minutos.
No entanto, aperfeiçoamentos foram sendo introduzidos na bitola
estreita (a bitola padrão de 1,435 m). O aumento das pressões
de caldeira; a colocação dos cilindros à frente e voltados para
a traseira da locomotiva (a aumentar a estabilidade e a diminuir
o lacete); o posicionamento dos cilindros na horizontal, ou só levemente
inclinados (idem); a melhoria da metalurgia e da usinagem das peças;
a introdução da distribuição Walschaertz; a colocação da fornalha
um tanto atrás das rodas, aumentando-lhe a largura etc. foram tornando
a bitola normal, primeiro, compatível; e, logo depois, superior
à extra-larga. E ainda, poder-se-ia superar a quebra de tráfego
mútuo. Além disso, nessa época não existia a competição rodoviária.
Os ingleses perceberam outro fato: regiões ficavam isoladas, ou
seu potencial não podia ser cabalmente aproveitado, não por falta
de ferrovias que as servissem, mas por deficiências decorrentes
dos custos, demoras e inconvenientes das baldeações entre bitolas.
No Brasil, ocorreu e ocorre o mesmo. Por exemplo, o que resta da
antiga Leopoldina agoniza por impossibilidade de intercâmbio de
tráfego com regiões das quais dependem os fluxos que nela se originam
ou que a demandam. A quebra de bitola, se julgarmos pelos fluxos
de tráfego rodoviário indicadores de potencial zonal, simplesmente
poda qualquer esperança possível de recuperação desse resto.
O desempenho da bitola normal nos Estados Unidos auxiliava melhor
o julgamento das aparentes vantagens das bitolas largas. Lá pela
década de 1870, os americanos tinham nada menos que 23 (!) bitolas
ferroviárias diferentes, inclusive a de 1,674 metro, além das bitolinhas.
A comparação dos dados estatísticos e do desempenho das ferrovias
inglesas e americanas demonstrou um fato insólito: o problema era
mais de gabarito do que de bitola, e o retorno era maior nas bitolas
não-largas (em ambos países, as ferrovias eram preponderantemente
de capital privado). Outra verificação: as diferenças de bitola
tornavam as ferrovias meras linhas de interesse zonal, e não regional,
interregional ou nacional.
A questão das velocidades já não comprovava a superioridade das
"broad gauges" (bitolas largas). Decidiu-se unificar as bitolas,
tendo em vista, também, os problemas comerciais de tráfego.
Com exclusão da Irlanda, com sua bitola de 1,60 metro — da qual
se originou a bitola larga brasileira —, o afastamento dos trilhos
seria o normal.
A Irlanda não representava problema, por ser ilha isolada, sem
tráfego direto. Constituiu o único caso, no mundo, de unificação
em 1,60 metro. A primeira ferrovia irlandesa adotou 1,435 m. A locomotiva
Vauxhall, uma 2-2-0 fabricada em 1834 para a Dublin and Kingston
Railway, era uma das mais avançadas da época e, apesar de ser de
1,435 m, a Irlanda unificou pela bitola predominante, de 1,60 m,
ou "bitola irlandesa".
Essa bitola, hoje, só é encontrada na Irlanda, no Brasil e nos
Estados australianos de Victoria e Austrália do Sul. A bitola de
1,60 m do Estado de Tasmânia foi reduzida para a bitola métrica
(denominaremos assim as bitolas de 1,067 e de 1,000 metro).
Em 1879, se não erro, veio a decisão inglesa de reduzir a bitola.
Em 1892, exatamente há 1 século, o último trecho de bitola extra-larga
desapareceu da Inglaterra. A unificação, portanto, se deu: (1) Por
adoção da bitola predominante; e (2) Por redução de bitola.
Mais ou menos pela mesma época (1875-1890), os Estados Unidos unificaram
as bitolas ferroviárias, dentro das mesmas diretrizes técnicas e
econômicas. É interessante adiantar que, por decreto governamental,
a bitola para a uniformização deveria ser de 1,524 m, hoje adotada
na Rússia, na Finlândia e na Comunidade de Estados Independentes
(ex-União Soviética), bem como na zona do Canal do Panamá. E o decreto
não foi seguido pelo capital privado norte-americano: — Era mais
rápido, fácil e econômico adotar a bitola predominante, reduzindo
as largas.
Em 10 de Maio de 1893, a 4-4-0 n° 999 da ferrovia norte-americana
New York Central, rebocando o Empire State Express, atingiu, em
serviço comercial, os 180 km/h. Esse recorde mundial confirmou os
ingleses na convicção de que a narrow gauge não significava
afastar-se da modernidade.
A Inglaterra — berço da Ciência Econômica, com Adam Smith — havia
chegado, concomitantemente com os Estados Unidos, à conclusão de
que as quebras de bitola são altamente anti-econômicas; de que nas
políticas de uniformização é mais rápido e econômico reduzir do
que alargar, se a bitola predominante for suficiente e compatível
com o desenvolvimento tecnológico ferroviário; e que os argumentos
econômicos devem ser considerados, tanto quanto as razões técnicas.
Sobre a teoria da bitola predominante, veja a Revista Ferroviária
de 1980 / Setembro, página 19.
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